A teologia de género e a identidade redimida
David e Brena Riker. Há quase 20 anos a abrir caminho a um conhecimento e vivência mais sãos, plenos e sustentados do bicho-de-sete-cabeças que é – por nossa própria culpa – a sexualidade. Sexualidade, Identidade e Fé foram as três palavras que serviram de mote à edição de 2023 do RefletIr, perante um auditório completo, em quantidade e diversidade, onde mais de 20 comunidades cristãs se fizeram representar. Como é inerente a qualquer bom processo de reflexão, chegámos todos com os bolsos cheios de perguntas e voltámos para casa com mais umas quantas. Ainda assim, formulámos, pelo menos, uma categórica (e até algo avassaladora) conclusão: o amor, sendo o nosso maior superpoder, é também a nossa principal criptonite. É que, em boa verdade, nós somos discípulos daquilo que mais amamos e é aquilo que mais amamos que define toda a nossa existência. Será que amamos Deus à Sua maneira ou à nossa? Foi uma das tais perguntas que trouxemos para a intimidade do nosso quarto.
Na primeira parte da reflexão, David Riker levou-nos numa viagem até ao capítulo inaugural da Bíblia, para podermos desconstruir a sexualidade a partir da macro-narrativa bíblica. Afinal de contas, “sede fecundos e multiplicai-vos” é o primeiro mandamento-benção de toda a Escritura. A sexualidade surge, antes da queda, enquanto património divino confiado à administração humana. À superfície, pode não parecer, mas uma benção colocada nas mãos erradas é tão nociva quanto uma maldição. É o “animal doméstico” de Adão e Eva que os induz ao pecado original, trazendo graves consequências para todas as esferas da vida humana, incluindo a sexual. Mas há boas novas: mesmo contaminada por esse vírus, a sexualidade pode ser redimida através de uma relação genuína com Cristo. O objectivo final é que ela seja administrada em função da glória do Criador e não em função da glória da criatura.
Por se tratar de um universo extremamente complexo, o orador convidado decidiu decompor a sexualidade em três partes: afectividade, desejo e prazer. A afectividade é a nossa reacção emocional ao que nos rodeia. A forma como sentimos o mundo. Maioritariamente, as nossas decisões são determinadas por afectos. Já o desejo prende-se mais com a nossa reacção erótica ao mundo. Neste ponto, era inevitável fazer-se um parêntesis para distinguir atracção de cobiça, tantas vezes postos no mesmo saco por todos nós. Sendo totalmente involuntária e, em certa medida, arbitrária, a atracção não define quem somos. A cobiça, por outro lado, é pôr a atenção (erótica) naquilo que não nos foi dado por Deus. Ao contrário da atracção, ela é cheia de intencionalidade. Note-se que estamos exclusivamente em território da mente humana. É que, citando David Riker, “o nosso maior órgão sexual é a mente”. Por essa razão, o desafio que se levanta é o de vivermos pelo que cremos, enquanto convivemos com o que sentimos. A fidelidade, por exemplo, tem muito mais de crença e convicção do que de sentimento. Quanto ao último elemento da sexualidade, o prazer, parece estar deturpado por um problema crónico e nem sempre fácil de identificar: nós, filhos do Deus vivo, criador do universo, criador que ao contemplar a sua criação disse que era muito boa, não vemos esse mesmo Deus como fonte de alegria e prazer. Vemo-lo meramente como fonte de proibições e condenação. Mas ter prazer em Deus é precisamente a antítese de uma mente que cobiça. E, de facto, é absolutamente inútil dizer a terceiros que parem de viver uma vida de prazer insubordinado e insaciável sem que lhes apontemos uma fonte alternativa de prazer, comprometido e interminável: o prazer que excede todo o entendimento.
Reconhecer a complexidade da sexualidade é um bom ponto de partida para reconhecermos que o nosso cérebro evangélico, agindo em legítima defesa, procura muitas vezes formas de simplificar, especialmente quando se vê diante de temas quentes como a homossexualidade ou a ideologia de género. Riker alertou-nos para quatro desses possíveis reducionismos: a demonização da sexualidade, a enfatização exagerada do factor genético, a disfuncionalidade familiar e o peso traumático de abusos sexuais e outras formas de violência. Longe de ser preto no branco, a sexualidade resulta de uma interacção dinâmica entre três variáveis: a biológica, a subjectiva e a educacional. Mas será que é possível mudar a orientação sexual de alguém? A verdade é que a Bíblia não reconhece uma identidade humana com base em afectos, mas sim fundada no nosso relacionamento com o Cristo que redime. Se há coisa que a Bíblia tem a dizer acerca da nossa identidade, é que “a todos quantos o receberam lhes deu o poder de serem chamados filhos de Deus”. Não somos quem somos pelo que sentimos nem sequer pelo que fazemos de certo ou errado. Ora, se estamos a discipular alguém, o nosso objectivo deve ser precisamente o de revelar a essa pessoa que, no seu código genético espiritual, reside a imagem e semelhança de Deus. Mas não. Nós andamos a ser péssimos médicos. Primeiramente, no pobre diagnóstico que fazemos. E, depois, nas precipitadas receitas que passamos só para tratar sintomas, deixando a verdadeira ferida aberta: orar mais, ler mais a Bíblia, louvar mais e buscar mais o Senhor. O discipulado não se pode fazer com base no desempenho litúrgico. Até porque a heterossexualidade, tanto quanto sabemos, não é sequer a meta da vida cristã.
Revelar ao outro a sua identidade em Deus, ajudando-o a viver em função dela em vez de sentimentos frágeis e efémeros, é O caminho. Se somos discípulos daquilo que mais amamos, precisamos de amar Deus à Sua maneira, isto é, com todo o nosso coração, toda a nossa alma, todo o nosso entendimento e, já que aqui estamos, com todo o nosso corpo. “Para quem é que estou a viver?” é uma pergunta muito mais importante do que “O que é que estou a sentir?”. Neste sentido, o pastor David encerrou a sua intervenção com três importantes passos para nos tornarmos verdadeiros discípulos que fazem discípulos: 1. Identificar o que / quem mais amamos; 2. Descredibilizar os nossos ídolos; 3. Substituir esses ídolos por Deus. Resolvida esta parte, é entender que a recompensa de Deus não é algo que Ele nos dá: é Ele próprio.
Na segunda parte da nossa reflexão, Brena Riker reforçou a premissa criacionista do marido David, sublinhando que o grande erro que cometemos na educação para a sexualidade é o facto de a iniciarmos a partir das circunstâncias corrompidas de um mundo pós-queda, e não a partir do cenário imaculado de um Éden onde homem e mulher andavam nus e não se envergonhavam. Passem as gerações que passarem, é fundamental voltarmos sempre “ao lugar onde já fomos felizes” para melhor aprendermos a lidar com as problemáticas do mundo contemporâneo. Brena foi peremptória em pôr o dedo na ferida, assumindo a incapacidade da Igreja para apresentar uma resposta adequada aos desafios actuais, principalmente pelo facto de esta se refugiar numa “mentalidade de ouriço”, em vez de se afirmar proactivamente com uma abordagem preventiva. Se as famílias, que são a base da Igreja (e, idealmente, da sociedade), se escusam da sua missão de educar para uma sexualidade redimida, então, estamos a entregar de bandeja essa missão nas mãos do mundo. Se nós não nos chegarmos à frente para falar a Verdade, alguém o fará por nós, mas de uma forma deturpada. Continuar a tratar a sexualidade a partir do tabu, da chacota ou da coacção é um erro crasso.
Com base em Deuteronómio 32:9-11, desvelámos outro importante princípio: antes de instruírem ou disciplinarem, as grandes e delicadas asas do “Deus-águia” vêm até nós para nos acolher e fazer saber o quão amados somos. Esse é o modelo a seguir. Seja com os nossos filhos biológicos, seja com os filhos adoptivos que Deus vai colocando no nosso caminho. Precisamos de aprender a trazer para perto, com uma postura assente, simultaneamente, na Graça e na Verdade. De acordo com Brena, para chegarmos a este ponto, há que passar, essencialmente, por três etapas: em primeiro lugar, sermos ousados o suficiente para revisitarmos a nossa própria história e vivências, estando plenamente conscientes da influência que elas têm na nossa actual concepção de sexualidade; depois, precisamos de identificar e derrubar as barreiras que limitam o nosso entendimento, como são os casos da ignorância e da vergonha; por último, temos de esvaziar-nos da chamada “moralidade impraticável”, aquela cujo mandamento número um é “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”.
Depois das suas intervenções, David e Brena sentaram-se ao lado dos pastores João Martins e João Duarte, para um painel de perguntas e respostas, que, na verdade, se veio a revelar um novo momento de reflexão. Entre alguns dos temas abordados, colocou-se especial foco na ideia de buscar prazer em Deus, o que não implica que vamos conseguir tudo o que queremos, quando queremos e como queremos. Quando o que nos dá prazer é considerado pecado à luz das Escrituras, a via da repressão não é certamente a ideal. Mais do que orar para que Deus faça desaparecer os nossos desejos indesejáveis, é pedir-lhe que nos ajude a lidar com eles com profunda maturidade. A identidade do povo judeu foi construída sobre uma promessa de fecundidade, mas a identidade da Igreja de Cristo precisa de ser construída sobre o pressuposto de um novo nascimento. O “ide e multiplicai” virou “ide e fazei discípulos”. E fazer discípulos é descortinar as impressões digitais de Deus no coração de cada ser humano.
Rui Ramalho
Artigo escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico